

ENSAIO – DRAMATURGIA
SÁBATO MAGALDI
Com A MANCHA ROXA,
cartaz do Teatro do Bixiga de São Paulo, Plínio
Marcos retoma a violência de seus textos mais característicos
e expressivos – BARRELA, DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA,
NAVALHA NA CARNE, O ABAJUR LILÁS – , de cuja linha
se afastou, só obtendo igual rendimento artístico
com a metalinguagem lírica da produção anterior,
BALADA DE UM PALHAÇO. Não é o caso de saudar
a volta do dramaturgo ao seu estilo mais autêntico, porque
a vertente mística pode produzir ainda muitos frutos. Valoriza-se,
antes de mais nada, na nova peça, a indignação
verdadeira, a linguagem crua, absolutamente adequada ao conflito,
o caráter de denúncia não panfletária,
que precisa ser ouvida por todos.
Trazer hoje em dia para o palco o tema da Aids sugere, a princípio,
oportunismo dramatúrgico, a receber o castigo do esquecimento,
quando a doença for debelada e sair da moda. Longe de Plínio
o propósito de fazer exploração sensacionalista
do problema. A questão por assim dizer o tocou porque,
além de estar ligada à perda de tantos amigos nossos,
muito queridos, envolve, no ângulo por ele escolhido, o
jogo do poder, a pequenez do indivíduo ante a força
opressora da sociedade e do Estado.
A idéia de A MANCHA ROXA, aliás, nasceu de um episódio
fortuito: profissionais de uma agência de publicidade procuraram
Plínio, para que ele gravasse um teipe
sobre a Aids, destinado especialmente às prisões.
O Juiz Corregedor dos Presídios informou-se a respeito
dos autores conhecidos entre os detentos, pra que a mensagem tivesse
eficácia, chegando à conclusão de que Plínio
era o nome mais popular. Tão meritória pareceu a
iniciativa ao dramaturgo que ele nem cobrou pelo trabalho. Quanto
à mensagem, apenas havia divergência. Não
queriam que Plínio implicasse a responsabilidade do Estado
pela disseminação da Aids nas celas. Acreditando,
certamente com razão, que o Estado tem que zelar pela integridade
do indivíduo, a partir do momento em que ele é afastado,
por efeito de sentença, do convívio social, o autor
não aceitava censura ao texto publicitário. Prevaleceu
o seu ponto de vista e o êxito coroou o empreendimento –
o teipe recebeu até prêmio internacional.
Mas o mergulho forçoso na situação mexeu
com a sensibilidade do artista. A angústia tomou conta
dele, durante as duas semanas do impasse criado pelo teor que
deveria ter a mensagem. Sabe-se que prisioneiros mataram colegas,
ao suspeitar que eram portadores da moléstia. Um, na promiscuidade
do ambiente, chegou a infectar dezenove. Por outro lado, registra-se
a solidariedade de presas, que não permitiram o afastamento
de um casal de lésbicas doentes. A MANCHA ROXA nasceu do
clima vivido pelo autor, ao ser convocado para colaborar na conscientização
de um universo tão trágico.
O cenário é uma cela especial de um presídio
feminino, onde estão encarceradas seis mulheres. Por que
especial? Têm direito a ela as condenadas de nível
superior, embora motivos de outra natureza, como revelará
o diálogo, propiciem também o privilégio.
Na cena inicial, enquanto Santa lê a Bíblia, a presidiária
apelidada Doutor aplica uma dose de droga nas colegas. Ao amarrar
a borracha no braço de uma delas, Isa, vê uma mancha
roxa. Revela-se, assim, o sintoma da Aids.
A descoberta da doença, de fácil transmissão,
cria de imediato uma atmosfera tensa, para não dizer de
pânico. Todas sabem que o mal passa pelo sangue, pelo esperma
e pelas fezes, e ali a agulha da seringa é a mesma pra
as sessões de “pico”. Numa primeira reação,
Tita diz que, se Isa lhe transmitir a moléstia, a matará.
As relações e os conflitos vêm à tona.
É Santa, diferente em muita coisa das demais mulheres,
quem leva o problema para o mundo exterior, chamando por socorro.
A algazarra faz a carcereira, que responde pelo sugestivo nome
de Grelão, tentar impor sua autoridade. Esse é o
pretexto para que novos choques se introduzam.
Santa tenta subornar a carcereira, a fim de sair dali, prometendo-lhe
uma quantia mensal extraordinária. Quando o acordo vai
consumar-se, interpõe-se Tita, que exige a permanência
de Santa na cela. Se a carcereira usar a força, Tita jogará
nela o sangue que derramar de Isa. Afastada a autoridade, as presidiárias
têm um momento de reflexão, até que a Professora
vê uma mancha roxa na canela de Tita. Começa, então,
o exame geral, para concluírem que todas estão contaminadas.
Entende-se que a consciência plena da situação
seja verbalizada pela Professora, que por sinal lecionava história.
Depois de narrar o passado, que explica sua presença ali,
a Professora fala: “Eu matei um cara, me prenderam, me julgaram,
me socaram aqui dentro. Mas eu estava limpa, com saúde.
Limpinha. Eu, aqui dentro, estou sob tutela do Estado. O Estado
é responsável por mim. Pela Isa. Pela Linda. Pela
Tita. Por você, Doutor. Pela Santa. Se eu fiquei com a roxa,
eles têm que me tratar.” Por isso ela decide “berrar.
Exigir. Cobrar. Perturbar. Mostrar a injustiça que fazem
com a gente.”
A revolta da Professora transcende, aos poucos, a quase passividade
do protesto, para transformar-se em ação. O ressentimento
pela indiferença da sociedade se abre em revide. Se as
colocaram ali, “por crimes que nos forçaram a praticar”,
elas darão o troco, empesteando o mundo. “Cada roxa
faz mil. Cada uma, mil.” Ouvem-se gritos fora de cena, anunciando
que há roxas em outras celas. As presidiárias encerram
a peça, com falas de torpe sedução, como
a oferecer-se ao público para um ato sexual que o contaminará
irremediavelmente.
Em pinceladas sintéticas, o autor levanta o perfil de todas
as personagens. A primeira a caracterizar-se é Santa (provavelmente
o nome é um apelido dado no presídio). Ela lê
a Bíblia, mas os trechos murmurados não foram pegos
ao acaso. Ao mencionar os escribas e os fariseus, Jesus observa
que eles dizem e não praticam. Está aí uma
primeira crítica à hipocrisia da sociedade, cuja
ação não corresponde às belas palavras
sempre enunciadas. Numa segunda leitura da Bíblia, Santa
encontra uma citação ainda mais próxima do
tema desenvolvido na peça: “Nada há fora do
homem que, entrando nele, o possa contaminar; mas o que sai dele,
isso sim, é o que contamina o homem. (...) Porque do interior
do coração do homem é que saem os maus pensamentos,
os adultérios, as prostituições, os homicídios,
os frutos, a avareza, as maldades, o engano, a dissolução,
a inveja, a blasfêmia, a soberba, a loucura. Todos esses
males procedem de dentro e contaminam o homem.” Sem querer
atribuir à Aids um caráter de castigo sobrenatural,
Plínio propõe, ao lado da questão social
e política em que desemboca o texto, uma dimensão
religiosa, de que não se acha ausente a dúvida a
respeito dos costumes. Compreende-se, por isso, que a certa altura,
Santa se exprima num monólogo, dizendo não ser depravada
e não transar sexo, nem droga ou bebida, e que essa doença
“é coisa do diabo”. Advogada, matou o marido,
por ciúmes, enquanto ele dormia, mas se arrependeu. No
tão brasileiro sincretismo, ela acredita que encarnará
de novo com ele, como “mãe, filha, esposa... na mesma
família”. E assim ele a perdoará.
Isa, a primeira em que se descobre a mancha roxa, fez psicologia,
razão pela qual não ficou em cela comum. Dependente
de droga, alia a fragilidade à passividade no relacionamento
com Linda, que masculinamente a domina. Isa está presa
porque “era mula de traficante, levava o bagulho pros bacanas
a troco de uma dose”. Já Linda matou uma lésbica
igual a ela e só tem o privilégio da cela especial
por determinação da carcereira. As duas ilustram,
na peça, o lesbianismo desenfreado, ao que se sabe comum
nos presídios.
Doutor, na qualidade de enfermeira, aplica a dose nas colegas.
Foi condenada porque “roubava droga no hospital pra dar
pra uma cadelinha chegada no pico” (cadelinha, no vocabulário
manipulado pelo autor, é a lésbica que desempenha
o papel feminino na relação). Cabe-lhe uma certa
autoridade, expressa por sinal no nome de Doutor, pela importante
função que desempenha no meio. A figura de Tita
se mostra mais contraditória, pela situação
ambígua em que foi colocada. Também ela não
teria direito à cela especial, por não ser formada.
A carcereira, porém, não esconde por que a favoreceu:
Tita foi sua cadelinha, além de ter prestado outros “serviços”.
Batedora de carteira, suadeira, Tita provavelmente se submeteu
a Grelão para usufruir das vantagens. O ressentimento com
certeza a fortaleceu para revoltar-se contra o arbítrio
da antagonista. Se a carcereira não recuasse, Tita daria
uma navalhada em Isa, fazendo seu sangue esguichar. Embora, ao
entrar na prisão, por interesse aceitasse o domínio
da autoridade, ela se define como mulher de homem. E a firmeza
de decisão está amparada, ainda, na posse da arma.
Na pintura de Grelão, Plínio denuncia todo o arbítrio,
pra não dizer o procedimento corrupto, da engrenagem penitenciária.
A carcereira, figura masculinizada, desfruta as novas detentas,
bem como as entrega à sodomização dos guardas.
Aceitando o suborno, estava disposta a colocar Santa numa cela
individual, para preservá-la da contaminação
da doença. O autor não tem com ela nenhuma contemplação.
Investida de poder funcional, exerce-o sem o menor escrúpulo,
numa metáfora candente a respeito da grande maioria dos
poderosos deste país.
A Professora personifica um drama experimentado pela juventude
que se perdeu no embate com a ditadura. Foi participante, ingressou
no movimento de periferia. Casou com um companheiro, que era movido
pelo mesmo ideal. Ele, contudo, não teve energia pra enfrentar
com lucidez a situação. Não conservou o emprego,
“porque não podia dar aula pressionado pelo sistema”.
O álcool costuma ser a fuga nessas circunstâncias.
O marido passou a roubar seu dinheiro para beber e, evidentemente,
desmoronou-se o vínculo conjugal. A Professora afirma que
“não podia lutar contra a tirania, instigar a massa
pra luta de libertação coletiva, se no plano particular...”
Até que arrumou um amante e, cedendo a seus argumentos,
colaborou no assassínio do marido. A trama foi desvendada
e ela veio parar no presídio. Essas histórias não
podem ser nunca muito originais – o repertório que
leva à prisão não difere muito.
Onde Plínio consegue efeito perturbador é na precisão
da linguagem, que não se atenua para deixar de ferir os
ouvidos delicados. Quase embrulha o estômago a descrição
de certas práticas a que são submetidas algumas
detentas. A impiedade objetiva do dramaturgo, não desejando
suavizar nada para o espetáculo, produz, em determinadas
cenas, incontornável mal-estar. Esse, provavelmente, o
maior mérito do texto, ligado, além do fato de ter
como cenário um presídio, à contundência
de BARRELA, primeira obra dramatúrgica de Plínio
Marcos.
Não são muitos os reparos a serem feitos a A MANCHA
ROXA. O espetáculo dispensa o canto da Professora, previsto
em quatro ocasiões, o que é sem dúvida acertado,
porque os versos não são da melhor qualidade (quebrar,
por esse recurso, o realismo do diálogo, não parece
convincente, e prejudica a fluência dos episódios).
Às vezes, introduzem-se repetições, inúteis
porque uma réplica já deixou tudo muito claro (parece
forçada, por exemplo, a volta freqüente das três
maneiras pelas quais se contrai a Aids). Plínio ganharia,
também, em elaborar mais o pretexto para Linda narrar sua
história. Fica visível a muleta, quando ela diz:
“Já te contei meu caso. Mas conto de novo.”
Por último, o monólogo da Professora sobre o seu
crime vem quase no final, quando as informações
a respeito das personagens já deveriam ter sido transmitidas,
para que a ação alcançasse a essa altura
pleno dinamismo. Não se trata da pausa, que valoriza o
golpe derradeiro: o longo monólogo interrompe o desfecho
que já se impunha, e suas revelações poderiam
perfeitamente estar distribuídas ao longo da peça.
A explicitação da mensagem admite mais controvertido
debate. A tendência é a de considerá-la óbvia,
portanto prejudicial à ambição artística.
Pondere-se, entretanto, que o feitiço de Plínio
não supõe sutilezas, avessas a seu vocabulário
cru. Um pequeno policiamento limparia as falas de lugares-comuns,
a exemplo de “O Estado é culpado”, “O
Estado é surdo. Os promotores, os juízes, os políticos
são todos surdos. O Governador é surdo” ou
“A indiferença total da sociedade é degradante”.
Tais escorregadelas contradizem a cortante dramaticidade da maioria
das falas.
Como encarar a decisão das presas de contaminar o mundo,
em verdadeiro ato de guerra? Teria Plínio sucumbido ao
irracionalismo? É preciso entender o refrão “Pra
cada uma, mil...” como a resposta desesperada ao beco sem
saída imposto pelo absurdo sistema carcerário, despreparado
para resolver os menores problemas, quanto mais o risco de uma
doença que assume proporções epidêmicas.
E a situação-limite exposta pela peça se
transforma na metáfora de um quadro social assustador.
O poder abusou de tal forma dos oprimidos, nas últimas
décadas, que não surpreenderá ninguém
se as multidões se rebelarem, num movimento semelhante
ao da Revolução Francesa, com dois séculos
de atraso. A violência instaurada nos grandes centros sugere
o prenúncio de um grande estouro, de que todos seremos
vítimas. Ouça-se o claro aviso de A MANCHA ROXA.
Se o texto se presta a polêmicas, elas acompanham o espetáculo.
O diretor e dramaturgo Léo Lama, filho de Plínio
Marcos, a duras penas reuniu o elenco. Cerca de setenta atrizes
não quiseram participar do desempenho. Não cabe,
por nenhum motivo, cobrar-lhes a recusa. As personagens se colocam
em posições tão difíceis, para a sensibilidade
coletiva, que uma atriz tem o direito de não sentir-se
bem na pele de qualquer delas. Não que se tema a confusão
entre papel e intérprete, tão comum nos veículos
de comunicação de massas. É que alguns desafios
mexem com os nervos das pessoas. Deve-se louvar, em princípio,
as sete atrizes jovens que tiveram a coragem de chegar à
estréia.
Léo Lama soube obter satisfatória homogeneidade
de Beth Daniel (Grelão), Camila Bolaffi (Isa), Cláudia
Campos (Doutor), Dione Leal (Professora), Elaine Gonçalves
(Santa), Graça de Andrade (Tita) e Leila Pantel (Linda).
Seria possível mencionar um ou outro destaque, mas o mais
importante é que todas se mostram muito integradas no conjunto.
O encenador deu o melhor de si no preparo do elenco.
Outras questões não estão resolvidas a contento.
Antes de mais nada, a do espaço. Para indicar o corredor
que leva à cela, e onde se deslocará mais tarde
a carcereira, Léo deixou vazio um retângulo esquerdo
no palco, sem grade divisória, para não incidir
no realismo (de resto, não há nenhum móvel
em cena, que ambientaria a cela). Além de reduzir inutilmente
a área interpretativa, desperdiçando vários
metros que seriam úteis às marcações,
o recurso permanece a meio caminho do realismo, não o acolhendo,
nem o descartando
As atrizes se despem, e umas vêem nas outras a mancha roxa,
mas o público não enxerga nada. Seria preconceito
realista pensar que o sintoma da doença deveria ser perceptível
para a platéia? A solução cênica não
satisfaz, porque a mancha é apontada e de fato não
existe. Um truque hábil afastaria a impressão de
mentira.
A última cena deixou de aproveitar uma boa sugestão
do texto. A rubrica registra que as atrizes, “rindo, bem
sedutoras, vão metendo o foco da lanterna roxa na cara
do público. Sempre nuas, sensuais, dançando e repetindo
as sandices sexuais”. O diretor preferiu a escuridão,
cortada apenas pela luz roxa das lanternas, que esfria o envolvimento
e lembra recursos utilizados em outros espetáculos.
No teatro, prevalece o impacto global, positivo ou negativo, e
A MANCHA ROXA tem a virtude de situar de novo Plínio Marcos
em seus verdadeiros e melhores domínios.
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