OS MARGINAIS DO PALCO
artigo de Sábato Magaldi

Se Oswald de Andrade, Nelson Rodrigues, Jorge Amado, Ariano Suassuna, Gianfrancesco Guarnieri, Oduvaldo Viana Filho, Augusto Boal e Dias Gomes, entre outros, deram contribuições especiais à dramaturgia brasileira, a de Plínio Marcos foi a de incorporar o tema da marginalidade, em linguagem de desconhecida violência.

Já em 1959 o estilo do autor poderia ser do domínio público, se a peça Barrela não ficasse circunscrita a uma única apresentação, no Festival Nacional de Teatros de Estudantes, realizado em Santos. O embaixador Paschoal Carlos Magno, um dos maiores animadores do nosso palco e promotor do certame, obteve licença especial para essa récita isolada, pois a proverbial estupidez da censura não precisou aguardar a ditadura militar para manifestar-se.

É quase inacreditável que um jovem de 24 anos (Plínio nasceu em 1935 e faleceu em 1999), sem nenhuma experiência teatral e literária, tendo apenas atuado como palhaço de circo, escrevesse uma peça com tanta maestria, uma noção tão precisa de diálogo e de estrutura dramática, uma limpeza completa de ornamentos inúteis. A concentração do texto tem muito do mais puro classicismo. Antes que se esgote uma virtualidade do conflito, Plínio muda o centro de interesse da ação e a trama resulta uma e compacta.

Barrela (curra, na gíria presidiária) instaura um diálogo de total verdade, em que a ausência de palavrões falsearia as cenas e as personagens. Entretanto, foram necessários vinte anos para que a peça chegasse à platéia (a estréia deu-se em julho de 1980, sob o signo da abertura política). Seria outra a evolução da dramaturgia brasileira, se ela pudesse ter sido apresentada logo depois de escrita? Não adianta permanecer em conjecturas, ainda mais que o lançamento de Dois pedidos Numa Noite Suja, em 1966, no espaço alternativo do desaparecido Ponto de Encontro, na Avenida São Luís de São Paulo, provocou idêntico impacto. E Navalha na Carne, vinda a seguir, consolidou o nome de Plínio Marcos como o mais vigoroso talento surgido na década de 60.

Dois Perdidos inspira-se numa história de Alberto Moravia, O Terror de Roma, incluída na coletânea Contos Romanos.
Esse foi, porém, o ponto de partida, pois a dramatização supera em todos os sentidos o original. Sobretudo porque Plínio se vale de sua primitiva experiência no circo. Paco e Tonho revivem a dupla clown e Toni, na técnica de puxar as falas, impedindo que a tensão caia. E, além das mudanças das peripécias e do recheio da história, uma circunstância altera fundamentalmente a focalização artística, no novo veículo: enquanto, no conto, há um narrador, sob cuja perspectiva se desenrola a trama, a peça atribui peso semelhante aos dois protagonistas (o narrador converte-se em Tonho e Lorusso se transforma em Paco). A passagem de Roma para o submundo brasileiro traz a violência maior à linguagem.

Navalha na Carne passa-se num “sórdido quarto de hotel de quinta classe”, reunindo a prostituta Neusa Sueli, o cáften Vado e o empregado homossexual Veludo. Poucas vezes uma obra mostrou tão perfeita adequação entre criaturas e diálogo, aprofundando, num corte vertical na realidade, a condição humana. O patético retrato do submundo se amplia para o macro-cosmo do duro relacionamento na vida atual. Despidas de valores que transmitem transcencência à aventura humana, as personagens exemplificam o horror da exploração, quando um se converte em objeto para o outro e só resta o gosto da miséria.

Plínio não faz um panfleto contra a injustiça social que acarreta aquela deformação. A crítica e a denúncia estão implícitas na sua narrativa, que vai ao fundo dos acontecimentos.

Navalha mostra uma corrente de absurdos em que todos são algozes e vítimas. Vado explora Neusa Sueli, que por sua vez exige que ele a satisfaça. Veludo furta o dinheiro deixado pela prostituta para o cáften a fim de obter os favores do rapaz do bar. Todos compram e se vendem nesse universo de reificação. A imagem final de derrota é mostrada por Neusa Sueli, que acaba a noite, sozinha, comendo um sanduíche de mortadela.

Uma análise superficial de Abajur Lilás, escrita em 1969 e só liberada pela censura em 1980, suporia que ela repete em parte Navalha na Carne. A semelhança se acha apenas na presença de prostitutas no elenco. Porque o que a peça realiza é o mais incisivo, duro e violento diagnóstico do País, após o golpe de 1964. A estrutura do poder ilegítimo está desmontada, para revelar, com meridiana clareza, um ríctus sinistro.

A trama se basta em si mesma, autêntica na sua crueza. Em face do proprietário do prostíbulo e de seu truculento auxiliar, uma prostituta é acomodada, por receio de represálias, outra pensa em obter vantagens e chega à delação, e a terceira é a revoltada irracional, que não mede conseqüências. O microcosmo retratado remete. Metaforicamente, ao doloroso macrocosmo político vivido durante a ditadura, em aguda pintura dos vários comportamentos assumidos pela nossa sociedade.

Depois do êxito de Dois Perdidos e Navalha na Carne, era fácil imaginar que Plínio, no bom sentido, ficasse na moda. E suas peças foram sucedendo no cartaz, tendo freqüentemente apresentações simultâneas. Não está feito ainda o inventário completo de sua produção, estimada em ao menos três dezenas de textos, alguns não levados ao palco, e compreendendo vários gêneros e tendências, do drama ao musical, ao show e ao infantil, e do realismo ao místico e ao poético.

Em 1967, não convence a recriação evangélica de Dia Virá!, com um Judas revolucionário, que trai Jesus para propiciar a rebelião popular. No mesmo ano Maria Della Costa lança Homens de Papel, uma história sobre os catadores de rua, em que o autor, que dominava a triturante “luta de cérebros” de poucas personagens, se mostra capaz de lidar densamente com muitas criaturas.

A peça curta Verde que Te Quero Ver participa da I Feira Paulista de Opinião, liderada por ordem judicial e interditada, em definitivo, com a edição do Ato Institucional nº 5, de 13 de dezembro de 1968, golpe ainda mais severo que o de 1º de abril de 1964. Na farsa desabrida, os militares encarregados da censura eram representados como gorilas, cuja senha se continha na exibição do rabo.

O Grupo a Opinião do Rio trouxe a São Paulo, em 1969, Jornada de Um Imbecil Até o Entendimento, fábula sobre as relações humanas no conturbado mundo moderno. Trata-se de uma caricatura de traços carregados a propósito dos vários tipos que exemplificam a vida que nos é dado contemplar e sofrer. No jogo equacionado pelo autor, com visão comprometida e sem requintes, o texto se transforma aos poucos num retrato feroz, em tom de parábola infantil. A verve popular não tem precedente em nenhuma obra anterior.

Balbina de Iansã, estreada em 1971, parte do esquema shakespeariano de Romeu e Julieta (enredo popular transposto em termos eruditos) para construir uma trama de amor que rompe as estruturas. Ao mesmo tempo em que assume os valores dos terreiros de macumba, sob o pretexto de denunciar uma “mãe-de-santo”, acaba por destruir as crenças místicas, em função de uma escolha racional. A peça adota uma perspectiva crítica e otimista, abandonando o horizonte sombrio da tragédia, para instaurar um amor que recusa as superstições, apoiando-se na sua própria força.
Transposta do Teatro São Pedro para o São Paulo Chic, o espetáculo aprofunda o caminho da popularidade. Programa que o autor desenvolve levando Quando as Máquinas Param no Sindicato do Têxteis, a preços mais acessíveis. E o público não sofisticado recebe melhora situação dramática do texto. Revigora-se o conflito entre a jovem grávida que deseja a todo custo preservar o filho e o marido que, desempregado e sem esperanças, a golpeia no ventre a fim de evitar o seu nascimento. A marca de sinceridade e inquietação atinge o público.

O diretor Osmar Rodrigues Cruz encomendou a Plínio Marcos uma peça sobre Noel Rosa, para inaugurar em 1977 o ótimo Teatro Popular do Sesi, na Avenida Paulista. Infelizmente, O Poeta da Vila e Seus Amores, qualificado pelo autor como roteiro, não correspondeu à expectativa. O texto contenta-se, freqüentemente, com flashes e esboços, quando as exigências dramáticas impunham um desenvolvimento da história. Sente-se a falta de maior número de informações e até a polêmica entre Noel e Wilson Batista, que ocupa tempo apreciável do espetáculo, permanece solta, sem justificativa plausível. Plínio se dá melhor com a própria vivência, não se sentindo à vontade com um compositor mesmo tão popular?

As características peculiares do dramaturgo reaparecem em Signo da Discothéque, encenada em 1979. O título sugere logo a postura contra a moral (ou falta dela) nascida nas discotecas. Somam-se aí a contínua defesa de Plínio contra a invasão do País pela moda estrangeira (os enlatados na televisão e a música de consumo, expulsando a criatividade nacional, por exemplo) e os distúrbios provocados por um gosto alienante. Num diálogo, a princípio, aparentemente impossível, reúnem-se num apartamento em pintura e o operário, o estudante e a jovem encontrada na discoteca. O machismo brasileiro é alvo de crítica implícita na peça, na utilização da mulher como objeto, sem se cogitar de sua participação como parceria. E se o propósito é de usufruí-la, não se coloca impedimento para que os dois homens se revezem na posse. A crueza da situação não impede que se humanizem as personagens, ao se aclararem os móveis que as impelem.

A abertura consolida em 1979 propicia um verdadeiro Festival Plínio Marcos, juntando-se às montagens em cartaz de O Poeta da Vila e Seus Amores, Jornada de Um Imbecil Até o Entendimento e Signo da Discothéque a de Oração Para Um Pé de Chinelo, proibida há dez anos e então liberada. Na trama, Bereco chega ao barracão habitado por Rato e Dilma, onde espera abrigar-se dos matadores impunes. Sua presença significa o risco de morte para todos. Daí desejarem que ele se afaste. Por outro lado, Bereco não quer que ninguém saia do barracão, mesmo para adquirir o alimento essencial, porque tem medo de que o denunciem. A força dramática vem do conflito gerado por esta tensão. Mesmo que não se fique sabendo como surge o Esquadrão da Morte, ele aparece, no desfecho, para liquidar os marginais, com o seu método bárbaro. Fica patente, contudo, que, destituídos de qualquer resquício moral, animalizados no processo único da tentativa de sobreviver, eles se emaranham na desconfiança mútua e se tornam inimigos uns dos outros, e acabariam por se destruir por conta própria.

Plínio volta ao tema da religiosidade, não submetida a nenhum credo particular, em 1981, com Jesus Homem, que retoma a solidariedade evangélica da primitiva figura de Cristo. Madame Blavatsky (1985) dramatiza, com elementos da biografia e da obra de Helena Petrovna Blavatsky, fundadora da Sociedade Teosófica, sua procura de autoconhecimento, mas o resultado artístico deixa nítido que essa linha não é a que o coloca mais à vontade. Já Balada de um Palhaço (1986) devolve-o a seu universo circense, dos primeiros contatos com o público, ao qual acrescenta uma bela meditação sobre a atividade artística, em lírica e efetiva metalinguagem. E a Mancha Roxa (1986) recupera a violência dos seus textos mais característicos e expressivos, ao teatralizar a descoberta da Aids num cárcere feminino.

O talento múltiplo de Plínio, embora mais bem realizado o palco, não se esgota nele. Têm muita força, também, as suas narrativas ficcionais e de reminiscências, a exemplo de Na Barra do Catimbó, Uma Reportagem Maldita (Querô), Prisioneiro de uma Canção, Histórias das Quebradas do Mundaréu e Figurinha Difícil - Pornografando e Subvertendo. Nesse último livro, de 1996, ele sintetiza seu ideário: “Eu não quero ser figurinha. Eu quero é contar a história da gente minha, que é essa gente que só pega a pior, só come na banda podre, o bagulho catado no chão da feira. Quero falar dessa gente que mora na beira dos córregos e quase se afoga toda vez que chove. Quero falar dessa gente que só berra da geral sem nunca influir no resultado. É disso que quero falar.”

A crítica Ilka Marinho Zanotto, ao prefaciar O Abajur Lilás, publicado antes de conseguir liberação para a montagem, perguntou “qual a lógica de escamotear do público o conhecimento de uma verdade que ninguém ignora?” para responder com argúcia: “Creio que a chave desse enigma está justamente na raiz da dramaturgia do autor: ela mostra como ‘gente’ aqueles que são considerados ‘marginais’.”
Sábato Magaldi é crítico de teatro e autor.

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