LINCOLN SÓ QUERIA A IGUALDADE
DOS HOMENS [1º artigo de uma série]
COLUNA: NAVALHA NA CARNE – ÚLTIMA HORA, SP,
2/5/1969
Meus cupinchas, são muitos os pererecos que servem pra provar
que nos tempos que correm o homem não é parceiro do
homem. Mas o que mais me atucana a cuca é a presepada que
o canal 5 [Tevê Globo] está armando. Eles vão
montar A Cabana do Pai Tomás em forma de novela. E o Tomás,
que é um personagem negro, vai ser vivido por um ator branco.
Vão tingir o panaca de preto. Vão deixar uma curriola
de bons atores crioulos fazendo papel de esparro. E o branco tingido
se badalando de estrelo. O Sérgio Cardoso é o cara
que vai se prestar ao triste papel de se pintar de preto pra fazer
o Tomás. E vai, na mesma novela, fazer mais dois outros papéis.
O de Lincoln e um outro branco. Vai dar seu show. Vai satisfazer
sua vaidade. Enquanto Samuel, Dalmo Ferreira, Benê Silva (formado
pela Escola de Arte Dramática), Milton Gonçalves,
Antônio Pitanga, Carlão Caxambu e tantos outros atores
negros, de valor provado, ficam pegando as rebarbas das quebradas
da vida.
Meus cupinchas, A Cabana do Pai Tomás é um romance
contra a nojenta escravidão. E vai servir, na bolação
dos majuras do canal 5, pra amesquinhar patrícios nossos.
Lincoln foi um grande homem que foi assassinado covardemente. Foi
a medalha que lhe deram por querer a igualdade dos homens. Lincoln
vai ser representado por um ator que não tem nada a dizer
sobre o humanismo.
Meus cupinchas, me vem na memória o Rubens Campos, um bom
crioulo com um talento raro, que morreu com vontade de comer. Sem
trabalho. Aguentou os seus últimos tempos mastigando o amargo
e nojento pão da caridade. Enquanto num palco de São
Paulo um branco tingido de preto faturava palmas, flores, dinheiro,
vivendo Otelo.
Meus cupinchas, não cabe uma besteira dessa no Brasil. Nós
aprendemos isso com nossos pais, com nossos mestres: “Todos
os homens são iguais.” Que interessa a verdade dos
livros, os conselhos sábios, se no dia-a-dia é tudo
uma caca?
Meus cupinchas, os atores negros certamente vão engolir essa
jogada cavernosa. Alguns atores brancos também. São
os que estão matando cachorro a grito. Sem emprego, sem nada.
Mas vão entrar nessa catraia furada, com a bronca pega. Se
ardendo de raiva. Calando a revolta por gama aos filhos. Por gama
à profissão que escolheram. Mas que, que manjo bem
os meus chapas negros, sei como estão machucados. E não
aguento mais. Boto a boca no trombone pra berrar por meus irmãos
negros. Chegou a hora de serem libertados da escravidão.
Dar chance igual a todos. Não podemos permitir que no Brasil
que a gente ama se faça uma afronta à dignidade humana.
Existem terras onde é comum pintar branco de negro pra entrar
no palco. Mas esse ridículo exemplo a gente não pode
aceitar. Vamos protestar com energia. Essa pornografia não
pode ir ao vídeo. Essa imoralidade não pode invadir
os lares.
Meus cupinchas, os atores negros sabem como seria ridículo
eles se pintarem de branco, no Brasil, para viverem o papel de Lincoln,
que eles tanto amam. Eles só querem fazer o Tomás.
Mostrar que têm talento. E isso não é racismo.
É um direito do homem de cor.
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