[Plínio Marcos de Barros nasceu em Santos, em 29
de Setembro de 1935, e faleceu em São Paulo, em 19
de Novembro de 1999. Filho de um bancário (Armando)
e de uma dona-de-casa (Hermínia), tinha 4 irmãos
e uma irmã.]
“A gente veio de origem mais ou menos humilde, mas
minha infância foi muito feliz, pelo menos foi muito
despreocupada. Morava numa vila de pequenos bancários
– na Rua das Antigas Laranjeiras - e foi nessa vila
que me criei. A única dificuldade que eu tinha era
exatamente o colégio. Eu não suportava a escola.
[Grupo Escolar Dona Lourdes Ortiz] Levei quase dez anos
para sair do primário.
E quando saí já não dava mais para
continuar estudando.” “Meu pai tentou me enfiar
em todas as profissões possíveis. Ele dizia
que, se eu tivesse uma profissão, sempre iria sobreviver.
Então meu pai me botou de aprendiz de encanador.
E eu acabei ficando funileiro. A minha profissão
mesmo é funileiro · é o que consta
no meu certificado de reservista.·
[Seu pai, que era espírita, também o colocou
para vender livros numa banca de livros espíritas
numa praça de Santos. Entre suas múltiplas
atividades, inclui-se, ainda, a de estivador no cais do
porto de Santos.] “ Para ser franco, eu, quando pequeno,
era tido como débil mental. Não conseguia
aprender. Meu poder de concentração era nenhum.”
[Já adulto, afirmava que tinha sido canhoto na infância
e que, pelos métodos educacionais da sua época
de criança, fora forçado a usar apenas a mão
direita, o que lhe dificultaria o aprendizado, impedindo-o
de realizar os trabalhos escolares com a mesma rapidez dos
seus colegas. Isso, dizia, teria contribuído para
torná-lo alienado do processo de aprendizado. Mas,
o fato é que sempre realizava todas as atividades
com a mão direita, inclusive escrever. E toda a sua
obra foi manuscrita.]
“Queria mesmo era ser jogador de futebol. Cheguei
até a jogar no juvenil da Portuguesa Santista, no
Jabaquara.” “Inclusive entrei para a Aeronáutica
seduzido pela idéia de jogar no time dela.”
[Começou a jogar na várzea santista, como
ponta-esquerda, e era tido como bom jogador.]
CIRCO E TEATRO AMADOR
[Começou
a vida profissional como palhaço de circo.] “Eu
queria namorar uma moça do circo, que conheci quando
o cantor do nosso bairro foi cantar no circo. O pai dela
só deixava ela namorar gente do circo. Então
eu entrei para o circo. Achei que era mais engraçado
do que o palhaço e que eu devia ser palhaço.”
“Eu tinha o apelido de Frajola, não porque
andasse bem vestido, mas porque tinha saído uma revista
em quadrinhos, Mindinho, com um gato chamado Frajola, que
sempre queria pegar um passarinho – e eu fui preso
roubando um passarinho numa casa, na ocasião em que
saiu a revista.” [E usou esse apelido como palhaço
de circo, o palhaço Frajola.]
“Comecei a ficar mais fixo em circo depois que saí
do quartel, com 19 anos. Mas, desde os 16, já estava
trabalhando como palhaço.” [Em 1953, percorria
o interior paulista com a Companhia Santista de Teatro de
Variedades, atuando como palhaço e humorista, e também
dirigindo
shows.] “Cheguei a ser humorista da Rádio
Atlântico e da Rádio Cacique, de Santos”.
“Trabalhei em todos os circos, no Circo dos Ciganos,
no Circo do Pingolô e da Ricardina, no Circo Toledo,
Circo
Rubi, da Aurora Viana e do Carvalhinho. Agora, o primeiro
pavilhão em que trabalhei foi o Pavilhão-Teatro
Liberdade, que ficou armado cinco anos em Santos [na
Avenida Pedro Lessa, Macuco], dando espetáculos todas
as noites.” “O circo era um pavilhão-teatro.
Tinha a parte dos shows e tinha a parte do teatro. Na primeira
parte, a gente fazia os shows: entrava o palhaço,
essas coisas todas, os números de circo; e, na segunda,
tinha sempre uma peça. Eu fazia vários pequenos
papéis. Nunca cheguei a fazer um grande papel, mas
sempre com falas, papelzinho de destaque.”
[Também começou a se apresentar na TV-5,
de Santos, como humorista e como palhaço Frajola,
alcançando grande popularidade. Já era apresentado
nos shows como “o cômico mais querido da cidade”,
ou “o
cômico da televisão”.]
Em 1958, “a Patrícia Galvão, a Pagu,
estava precisando de um cara pra substituir um ator de uma
peça infantil que ela estava fazendo [Pluft, o Fantasminha]
e que tinha que ser feita no dia seguinte. Me convidaram
e eu fui. E lá fiquei conhecendo essa mulher maravilhosa.”
“Ficamos amigos de infância.” “...
quando encontrei a Pagu, conheci um grupo de intelectuais
raríssimo. E recebi uma forte influência desse
grupo.” “Todos os domingos a Pagu fazia o Geraldo
Ferraz [seu marido] ler uma peça pra nós.
Peças como Esperando Godot.” “A gente
ficava ouvindo a Pagu falar e aquilo nos despertava para
ler, para estudar.”
[Nessa época, é membro do Clube de Poesia,
do jornal O Diário, de Santos, tendo várias
poesias publicadas. Começa, também, a trabalhar
ativamente no teatro amador santista, tradicionalmente de
muito boa qualidade. Em 58 e 59, trabalha com sucesso como
ator e/ou diretor em várias peças: Pluft,
o Fantasminha, Verinha e o Lobo, Menina Sem Nome, A Longa
Viagem de Volta, Escurial,
O Rapto das Cebolinhas, Jenny no Pomar, Triângulo
Escaleno, Fando e Lis.]
BARRELA
“Houve
um caso, em Santos, que me chocou profundamente: um garoto
foi preso por uma besteira e, na cadeia, foi currado. Quando
saiu, dois dias depois, matou quatro dos caras que estavam
com ele na cela. Fiquei tão chocado com esse negócio
todo que escrevi a Barrela.”
“Juro por essa luz que me ilumina que até então
nunca havia me ocorrido escrever uma peça, pois eu
não conhecia as grandes peças da dramaturgia
nacional, nem universal. Conhecia as peças que eram
apresentadas no Pavilhão Liberdade: Paixão
de Cristo, O Mundo não me Quis, Rancho Fundo,
O Ébrio. Mas, o caso do garoto me comoveu tanto,
que eu, depois de andar uns tempos atormentado com a história,
a despejei no papel.
Escrevi em forma de diálogo,
em forma de espetáculo de teatro, que era o que eu mais
conhecia, mas não me preocupei com os erros de português,
nem com as palavras. Imaginei o que se passara no xadrez antes,
durante e depois de o garoto entrar, coisas que eu conhecia
bem de tanto escutar histórias na boca da malandragem.
E dei o nome de Barrela, que é a borra que sobra do sabão
de cinzas e que, na época, era a gíria que se
usava para curra.”
“Li a peça pra alguns companheiros do circo e naturalmente
eles acharam que eu tinha enlouquecido, se pensava que podia
encenar uma peça com aquela linguagem. Ficou por isso
mesmo.” “Ninguém quis montar e eu levei para
a Pagu, que achou meu diálogo tão poderoso quanto
o do Nélson Rodrigues. Ela, então, levou Barrela
para o Pascoal Carlos Magno, que estava realizando o Festival
Nacional de Teatro de Estudante em Santos. Então, ele
fez um puta escarcéu, descobriu um gênio, essas
coisas.” “... e no final do festival falou para
os jornais que fazia questão que os estudantes montassem
a peça.”
“Começamos a ensaiar no início do ano de
1959.” “Aí, eu é que fui dirigir,
eu que fiz um papel, eu que fiz o cenário, eu que fiz
tudo.” [O texto foi enviado para a Censura Federal, que
o proibiu. A Patrícia Galvão comunicou-se com
o Pascoal Carlos Magno, uma espécie de ministro sem pasta
do Governo de Juscelino Kubitschek. Ele, então, enviou
um telegrama diretamente do gabinete do presidente dizendo para
a polícia reconsiderar a proibição da peça.
E o texto foi liberado para uma apresentação,
no dia 1º de novembro de 1959, no palco do Centro Português
de Santos, ficando depois proibido pela Censura Federal por
vinte e um anos.]
“No dia seguinte, a cidade só falava da nossa peça.
Eu achava tudo lindo e me badalava como gênio, até
que, de tanto me encherem, escrevi outra peça, sem ter
absolutamente nada pra dizer.” [A peça era Os Fantoches,
ou Chapéu sobre Paralelepípedo para Alguém
Chutar, reescrita depois como Jornada de um Imbecil até
o Entendimento.] “E foi um vexame tão grande, tão
grande, que no dia seguinte a Patrícia Galvão
[que escrevia crítica de teatro para o jornal A Tribuna
de Santos] botou na Tribuna o meu retratão de gravata
borboleta e tudo, com uma manchete assim: Esse analfabeto esperava
outro milagre de circo.” “Mas, não me acanhei.
Estava selado que eu era um autor teatral e eu jurava pra mim
mesmo que nem sucessos, nem fracassos me abateriam.”
COMEÇO EM SÃO
PAULO
“Vim
pra São Paulo de vez em 1960. Aqui, a primeira viração
foi vender coisas de contrabando. Eu ia buscar em Santos
e vendia aqui: cigarros americanos, rádio de pilha,
esses troços. Fiquei um tempão trabalhando
de camelô. Pegava no Largo do Café e vendia
na esquina. Álbum de figurinha também. Depois,
vi o pessoal do Teatro de Arena, porque eu parava no Bar
Redondo. Entrei na Companhia da Jane Hegenberg, no lugar
do Milton Bacarelli, montamos um espetáculo que foi
um desastre (O
Fim da Humanidade). Fiz teatro infantil.” “Foi
anunciado um teste para a Companhia Cacilda Becker, um teste
de atores para a peça César e Cleópatra,
que o Ziembinsky ia dirigir. Fui lá, fui aprovado.
Fazia várias pontas: carregador de tapete, guarda
egípcio, umas dez coisas. E foi um dos maiores fracassos
da Cacilda. Ficamos muito, muito amigos mesmo. Eu trabalhava
em duas peças ao mesmo tempo: fazia o primeiro ato
de César e Clópatra, na Companhia da Cacilda,
e entrava em O Noviço, no Teatro de Arena, no último
ato.”
“Depois, [1963] a Cacilda e o Walmor me deram uma
colher de chá e fiz o Juca Afogado na peça
O Santo Milagroso, do meu camaradinha Lauro César
Muniz. Daí veio Onde Canta o Sabiá, e eu fui
para o vinagre. A crítica me malhou bem. Peguei meu
boné e fui cantar em outra freguesia.”
“Nunca tive esse negócio de ser de um grupo,
trabalhava onde me deixavam. Como ator, como administrador,
como qualquer coisa. Eu tinha que trabalhar, viver de uma
profissão, e a minha profissão era essa –
teatro.”
Em 1965, “com um belo time
que estava começando a carreira, fomos fazer Reportagem
de um Tempo Mau, no Teatro de Arena. E a Censura proibiu.
Era minha primeira peça em São Paulo. Que
merda. Mais anos e anos de espera. Resolvemos pelo menos
fazer uma sessão clandestina pro pessoal de teatro
ver nosso trabalho.”
“Continuei na luta brava. De manhã, vendia
álbum de figurinha na feira, de tarde trabalhava
na técnica da Tupi e à noite fazia uns bicos
como administrador do Arena.” [Já escrevia
também, desde 1963, para o programa TV de Vanguarda,
da Televisão Tupi, SP.] “Quando acabou o Arena
Conta Bahia, no Arena, fui trabalhar como administrador
na Companhia Nídia Lycia.” “Aproveitei
então para organizar minha nova peça, Jornada
de um Imbecial até o Entendimento. Fomos à
luta. Ensaiamos muito, mas – porra! – veio a
censura. Mais uma vez uma peça minha era proibida.
Depois de tanto trabalho, tanto esforço. Mas, era
preciso continuar a luta.”
“Ser impedido de trabalhar, de ganhar o pão
de cada dia com o suor do próprio rosto é
terrível. Você tem a sensação
de que é um exilado no seu próprio país.
Eu sei bem como é isso. Penei. Penei muito. A minha
sorte é que nunca cortei os laços com as minhas
raízes. Fui camelô. Voltei pra rua pra camelar.
Não caí. Não bebi. Não chorei.
Nem perdi o bom-humor. Mas, sofri mais do que a mãe
do porco-espinho na hora do parto, impedido de trabalhar.
E ignorado por colegas, que se diziam de esquerda, nas rádios
e nas televisões. Mas, deixa pra lá. Essa
sujeira sai no mijo, não tenho mágoas.”
DOIS PERDIDOS NUMA NOITE SUJA
“Então,
escrevi Dois Perdidos numa Noite Suja para eu mesmo representar.
Ator pequeno, sem nome, sem carreira, sem nada, trabalhando
de técnico na Televisão Tupi, ninguém
convidava pra nada. Ninguém se lembrava que eu era
também ator. Então escrevi uma peça
com papel pra mim.” “Uma peça de dois
personagens, inspirada num conto do Moravia, O Terror de
Roma. Peguei o Ademir Rocha, que também estava desempregado,
e chamei o Benjamin
Cattan pra dirigir. E, como não tínhamos
local, fomos estrear no Ponto de Encontro, um bar na Galeria
Metrópole, que o Emílio Fontana conseguiu
pra nós.
A Nídia Lycia,
que é muito minha amiga, foi quem me emprestou os cinqüenta
mil-réis pra montar a peça. O Bucka, outro amigão,
outro dinheirinho.” “O pessoal da técnica da
Tupi ajudou a gente a afanar refletores, os praticáveis,
as camas e tudo aquilo de que precisávamos para o cenário.
O transporte foi feito pelo pessoal da garagem.” “O
Toninho Matos e o Paulinho Ubiratan (depois diretor da Globo)
operavam luz e som.”
“Cinco pessoas foram assistir à estréia: a
Walderez, o Carlos Murtinho, a mulher do Ademir, um bêbado,
que não quis sair porque aquilo lá era um bar, e
o Roberto Freire. Aí, o Roberto Freire começou a
fazer uma onda em torno, dizendo que a peça era muito boa,
e outra vez voltei a ser notícia como autor teatral. O
Alberto D´Aversa escreveu cinco artigos sobre a peça.
Fiquei na moda. A Cacilda Becker, quando viu a peça, comentou:
Incrível! Você conhece dez palavras e dez palavrões,
e escreveu uma peça genial. E várias peças
minhas piaram na parada: Navalha na Carne, Quando as Máquinas
Param, Homens de Papel.”
“Dois Perdidos foi liberada porque naqueles dias a Censura
passou da Polícia Estadual para Federal. E mudaram os censores.
Mandaram o Coelho Neto assistir ao ensaio. Homem de teatro, diretor
de peças. Foi da comissão julgadora do Festival
de Santos, quando a Barrela se consagrou.” “Numa tarde
de sábado, chuvosa e fria, num estúdio abandonado
da Tupi, sem cenário, eu e o Ademir, sentados em bancos
velhos, falamos o texto pra ele. Quando acabamos, ele liberou
o texto sem cortes.”
NAVALHA NA CARNE
[Com Navalha na Carne, seria diferente. A peça estava sendo
já ensaiada em São Paulo, com Ruthnéa de
Moraes, Paulo Vilaça e Edgard Gurgel Aranha, sob a direção
de Jairo Arco e Flexa, quando veio a proibição da
Censura Federal. E só seria liberada “depois de uma
batalha imensa, que começou com uma apresentação
na casa de Cacilda Becker.” Cacilda morava num duplex na
Avenida Paulista e havia transformado a parte superior num teatrinho.
Às segundas-feiras, organizava leituras de peças,
debates, convidando sempre artistas e intelectuais. Quando soube
da proibição de Navalha, ofereceu esse espaço
ao Plínio e ao elenco, iniciando assim um movimento nacional
pela liberação da peça, colhendo depoimentos
de pessoas importantes do meio artístico e cultural, que
haviam sido convidadas para assistirem à apresentação.]
“Fomos depois para o Rio
de Janeiro. A apresentação da peça [a portas
fechadas] seria no Teatro Opinião. O Exército
cercou o teatro. Proibiu a apresentação. A Tônia
Carrero comprou a briga. Levou a apresentação
pra uma casa vazia que ela tinha no morro de Santa Teresa. Pra
despistar, fiquei dando entrevista aos jornalistas, enquanto
o povo [que recebia senhas com o endereço da casa da
Tônia] ia saindo sem alarde. A casa ficou lotadinha e
tinha público para outro espetáculo.” [Ao
final, Tônia disse que poderia liberar a peça,
com a condição de ela fazer o papel. Ficou acertado,
então, que ela faria a peça no Rio, e Ruthnéa
faria em São Paulo. Plínio impôs uma condição:
que Fauzi Arap, que havia dirigido uma montagem de Dois Perdidos
no Rio, dirigisse Navalha com a Tônia.] “E Tônia
liberou a peça. Foi preciso muita coragem. Precisou jogar
na mesa todo seu prestígio. Precisou encarar uma briga
feia com seus parentes generais. Mas, ela ganhou e estreou.
CENSURA
“Todo mundo queria
texto meu. E o Ginaldo de Souza, que dirigia o Teatro Jovem, do
Rio de Janeiro, também quis. Chamou o Luís Carlos
Maciel pra dirigir a Barrela. Depois de um mês de ensaio,
a Censura proibiu a peça. Foi convocada a classe teatral,
os críticos do Rio e de São Paulo escreveram pedindo
a liberação, depois de assistir à peça
em sessões clandestinas. (Fizemos três, com o teatro
cercado por policiais.) Pareceres importantes como esses e outros
foram enviados ao então Ministro da Justiça, Gama
e Silva. De nada adiantaram os argumentos. Era março de
68, e o ministro proibiu a peça. Doeu em mim essa proibição
mais do que todas as das outras peças. Doeu, mas não
me desanimou.
Em 1969, em Brasília, conversando com um figurão
da Censura Federal, ele me disse que o caso Barrela poderia ser
revisto, desde que houvesse possibilidade de ele assistir a um
ensaio. Acreditei. Santa ingenuidade! O Ginaldo de Souza, testemunha
dessa conversa, também acreditou, mas não tinha
condições de produzir a peça na ocasião.
Vim pra São Paulo, contei a conversa pra uns amigos, que
resolveram produzir a peça. Convidaram o nosso querido
Alberto D´Aversa pra dirigir.
E em junho de 69, com a peça
prontinha, procuramos o figurão da Censura pra assistir
ao ensaio. E o homem simplesmente negou tudo, negou ter prometido
alguma coisa a mim. A peça continuou proibida. E todos
nós sofremos.”
[No dia 3 de Agosto de 1968, o jornal Folha de São Paulo
publica: A situação de Plínio Marcos é
a seguinte: trabalho dele que chega em Brasília, antes
mesmo de ser lido, os censores dizem: Plínio Marcos? Proibido.
Após o ano de 1968, o teatro de Plínio Marcos era
sistematicamente censurado. Até mesmo Dois Perdidos numa
Noite Suja e Navalha na Carne, que já haviam sido apresentadas
em diversas regiões do país, foram interditadas
em todo o território nacional. Na década de 70,
Plínio Marcos era o próprio símbolo do autor
perseguido pela censura. Era considerado um maldito, que incomodava
a ditadura e a Censura Federal. Foi preso pelo 2º Exército
em 1968, sendo liberado dias depois por interferência de
Cassiano Gabus Mendes, então diretor da Televisão
Tupi. E, em 1969, foi preso em Santos, no Teatro Coliseu, por
se recusar a acatar a interdição do espetáculo
Dois Perdidos Numa Noite Suja, em que trabalhava como ator. Foi
transferido depois, do presídio de Santos, para o DOPS
em São Paulo, de onde saiu por interferência de vários
artistas e sob a tutela de Maria Della Costa. Além dessas
prisões, foi detido para interrogatório em várias
ocasiões.]
“De repente, todas as minhas peças foram proibidas.
Por quê? Ninguém dizia coisa com coisa. Um filho-da-puta
de um censor, num dia em que eu perguntei por que todas as minhas
peças estavam proibidas, ficou nervoso:
- Porque suas peças são pornográficas e subversivas.
- Mas por que são pornográficas e subversivas?
- São pornográficas porque têm palavrão.
E são subversivas porque você sabe que não
pode escrever com palavrão e escreve.”
“O palavrão. Eu, por essa luz que me ilumina, não
fazia nenhuma pesquisa de linguagem. Escrevia como se falava entre
os carregadores do mercado. Como se falava nas cadeias. Como se
falava nos puteiros. Se o pessoal das faculdades de lingüística
começou a usar minhas peças nas suas aulas de pesquisas,
que bom! Isso era uma contribuição para o melhor
entendimento entre as classes sociais.”
“Eu escrevo histórias. Eu tenho histórias
pra contar. Mas, tudo o que escrevo dá sempre teatro.”
“Eu sempre escrevi em forma de reportagem. As minhas peças
não têm ficção, sabe? Eu escrevo, desde
Barrela, reportagens.”
“Eu, há dezessete anos [1973], sou um dramaturgo.
Há dezessete anos pago o preço de nunca escrever
para agradar os poderosos. Há dezessete anos tenho minha
peça de estréia [Barrela] proibida. A solidão,
a miséria, nada me abateu, nem me desviou do meu caminho
de crítico da sociedade, de repórter incômodo
e até provocador. Eu estou no campo. Não corro.
Não saio. E pago qualquer preço pela pátria
do meu povo.]
LITERATURA
“Eu fui escrever
literatura
porque a censura não estava liberando nenhuma peça
minha. O Querô ia ser mais uma peça de teatro. [Uma
Reportagem Maldita – Querô, publicado em 1976, ganhou
o Prêmio APCA de melhor romance desse ano.] Só escrevi
em forma de romance porque não achei que iria passar na
censura. Tanto é que ele está adaptado para teatro.
Dentro da Noite, outra novela para televisão, também
foi proibida. Nas Quebradas do Mundaréu é conseqüência
das historietas que escrevi na Última Hora. Virou um livro.”
[Desde 1968, tinha uma coluna diária no jornal Última
Hora, SP, no qual trabalhou até 1978, não ininterruptamente.
Assinou também uma coluna nos jornais Diário da
Noite, Folha de SP, Movimento, Diário Popular, Jornal da
Orla, entre outros; escreveu crônicas sobre futebol na revista
Veja (1975/76), além de colaborações para
outros jornais e revistas. Escrevia contos, reportagens, entrevistas,
crônicas sobre vários assuntos.]
“E o Inútil Pranto, Inútil Canto para os Anjos
Caídos são contos.” [Escreveu ainda outro
conto, O Assassinato do Anão do Caralho Grande, que também
adaptou para teatro. Publicou ainda outros livros de pequenos
contos ou relatos autobiográficos: Prisioneiro de uma Canção,
Canções e Reflexões de um Palhaço,
Figurinha Difícil, O Truque dos Espelhos.]
“A Barra do Catimbó, que é outro romance meu,
também foi proibido como novela de televisão.”
[Começou a escrever histórias da Barra do Catimbó
em jornal, antes de lhes dar a forma de romance.] “Pra evitar
esculacho, criei a Barra do Catimbó, onde passei a fazer
acontecer todos os salseiros. E, aos poucos, me apaixonei pela
Barra do Catimbó. Fui criando personagens que, de início,
eram baseados nos tipos que conheci na minha cidade querida, mas
que, aos poucos, foram crescendo, ganhando características
próprias e, acreditem ou não, se formavam sozinhos,
indiferentes à minha influência. Mestre Zagaia e
os ensinamentos da sua Tabuada das Candongas, colhidos nos estreitos,
esquisitos e escamosos caminhos do roçado do bom Deus.
Nega Bina Calcanhar de Frigideira, que no começo era só
mulher do crioulo Catimbó, fundador da Barra, e que ganhou
importância quando mataram seu marido. Oscarino Vaselina,
eterno candidato a vereador, Seu Olegário, Seu Azulão,
Mané Cheiro de Peixe, Mãe Begum de Obá, Chupim,
Pé de Bicho, Intrujão Guegué, Bolinha do
Mobral, Dona Cotinha Fofoqueira, Quim Ilhéu, Azevedo do
Apito, Valdo Camelô, Catulé Sambista, e tantos outros.”
“Eu os amo por serem frágeis diante dos duros combates
do dia-a-dia, mas que não se rendem nunca. Porém
(e sempre tem um porém), o que quero dizer e o que pesa
na balança é que já pensei, e penso muito,
chego a ser atormentado por essas figuras, em meter tudo isso
no palco de um teatro.” [O que, infelizmente, nunca chegou
a fazer.]
“Não tem tu, vai tu mesmo. Era assim. Eu ia vendendo
meus livros nas ruas, feiras de livros, nas portas dos teatros,
nos restaurantes Gigeto, Giovani Bruno, Orvieto, Piolim. Um pouco
aqui, um pouco ali. Batendo papo, contando histórias e
faturando uma grana. Sabe, não é fácil vender
livros em terra de analfabeto com fome. A maioria das pessoas
reconhecia que aquilo era uma forma de resistência. Uma
parada dura. Mas, eu não me acanhava. Não me queixava.
Conheço bem a lei do choque do retorno: Quem planta vento
colhe tempestade. E eu incomodava mesmo. Era perseguido, mas fiz
por merecer. Eu encarava todas do jeito que viessem. Às
vezes, apareciam uns e outros querendo me humilhar. Era péssima
viagem. Eu pegava bem. Dava duro.”
SAMBA
[Não foi importante
apenas como escritor, mas como um conhecedor e defensor da cultura
popular brasileira. Em Santos, já participava das festas
populares da cidade, como o Carnaval.] “Não era mole
o carnaval na Baixada Santista. Começava muito antes dos
três dias. Primeiro eram as batalhas de confete. Era lenha
pura. Uma em cada bairro. E não era um desfile de araque
com meia dúzia de crioulos batendo no couro do falecido.
E depois vinha o desfile da Dorotéia. E o desfile dos blocos.”
“Quem viu, viu. Quem não viu não vê
mais. É uma pena.” “Não era mole botar
Carnaval na rua no tempo do Mestre Zagaia. A polícia acabava
com os pagodes na base do chanfralho.
Mas, nem por isso a turma do samba
se acanhava. Só saía nos cordões nego pedra
noventa, gente que não fazia careta pra cego nem cerimônia
com otário.”
[Já em São Paulo, em 1964, escreveu um texto para
um espetáculo de música popular brasileira, Nossa
Gente, Nossa Música, realizado pelo Grupo Quilombo, dirigido
por Dalmo Ferreira, no Teatro de Arena. Sempre foi um defensor
e divulgador do trabalho de sambistas
das Escolas de Samba de São Paulo. Em 1970, escreveu e
dirigiu Balbina de Iansã. As músicas do espetáculo,
de compositores tradicionais do samba paulista, como Talismã,
Sílvio Modesto, Jangada, foram gravadas em LP, em 1971.
Em 1974, lança outro LP – Plínio Marcos em
Prosa e Samba, Nas Quebradas do Mundaréu – com os
sambistas Geraldo Filme, Zeca da Casa Verde e Toniquinho Batuqueiro,
disco considerado fundamental para quem quer estudar o samba da
cidade de São Paulo. Esse disco é resultado de um
show que já vinha fazendo com esses e outros músicos
e que, com algumas variações, recebeu diferentes
nomes: Plínio Marcos e os Pagodeiros, Humor
Grosso e Maldito das Quebradas do Mundaréu, Deixa
Pra Mim que eu Engrosso.
Além desses e de outros shows,
nesse mesmo período tinha programas em rádios e
na Televisão Tupi, nos quais divulgava o trabalho dos sambistas
paulistas. Durante vários anos, fez a cobertura do desfile
das Escolas de Samba de São Paulo para jornal, rádio
ou televisão.
Em 1972, é o fundador da primeira banda carnavalesca de
São Paulo, a Banda Bandalha, que saía na quinta-feira
da semana anterior ao Carnaval e, também, no sábado
de Aleluia, e cujo ponto de partida era em frente ao Teatro de
Arena, no Bar Redondo, reunindo artistas, intelectuais e sambistas
de várias Escolas de Samba, que se misturavam a milhares
de foliões. ]
O ABAJUR LILÁS
“Uma noite, [1975]
entrei no Gigeto e o Samuel Wainer me apresentou o Américo
Marques da Costa, que viria a ser uma das pessoas mais lúcidas
e mais amigas que conheci. Ele queria botar grana numa peça
minha.”... “Meti a mão na sacola e tirei de
lá O Abajur Lilás.”
[A peça O Abajur Lilás foi escrita em 1969, e no
mesmo ano Paulo Goulart começou a produção
do espetáculo, com ele mesmo dirigindo, e Nicete Bruno
e Walderez de Barros no elenco. Após uma consulta informal
à Censura, veio a resposta negativa. Os ensaios foram interrompidos.
E, em 1970, o texto foi proibido por cinco anos para todo o território
nacional. Em 1975, portanto, o texto estaria liberado.]
“Começaram os ensaios. Com o Antônio Abujamra
no comando. Um dos maiores diretores de todos os tempos. Com Lima
Duarte, Walderez de Barros, Cacilda Lanuza, Ariclê Perez.
E o Túlio de Lemos de assistente de direção.
Eu sabia, e o Américo também sabia, que tudo corria
bem. E veio afinal o dia do ensaio para a censura. Eles nos obrigaram
a fazer o espetáculo como ia ser na estréia para
público. Cenário, figurino, iluminação.
Desconfiávamos que era armação das piranhas
da censura pra atingirem economicamente a produção.
E era. Esse espetáculo pra censura eu assisti. Escondido,
porque era proibida a presença de qualquer pessoa, mesmo
o autor. E era belo. Belíssimo. Mas... proibiram. Só
quem passou por isso pode dizer como é uma sensação
de frustração. Precisa uma fibra imensa pra aguentar
um troço desse.”
[No dizer de Ilka Maria Zanotto, “As circunstâncias
fizeram de O Abajur Lilás mais do que uma simples peça,
uma bandeira.” A classe teatral organizou várias
manifestações de protesto contra a censura da peça,
e grande parte das companhias teatrais não trabalhou, na
quinta-feira, dia 15 de maio de 1975, data da proibição
da peça. E durante as semanas seguintes, era lido um manifesto
contra a censura, em todos os teatros, antes do início
dos espetáculos. O advogado Iberê Bandeira de Melo,
amigo de infância de Plínio Marcos, entrou com um
recurso contra a Censura. O próprio Ministro da Justiça,
Armando Falcão, reiterou a proibição da peça,
sob a alegação de que ela atentava contra a moral
e os bons costumes. O Dr. Iberê e Plínio Marcos continuaram
com a luta e foram, de instância em instância, até
chegarem ao Supremo Tribunal Federal.]
“Perdemos em todos os lances. Perdemos. Com um, apenas um
voto favorável. Havia um homem honrado entre os juízes.
O Dr. Jarbas Nobre. Perdemos. Mas, era uma vitória.”
“Eu voltei de Brasília certo de que tinha enchido
o saco dos donos do poder. Cumpri com grandeza o meu papel.”
“Ai, eu me organizei pro pior. E o pior veio. Muito pior
do que eu imaginava: na base do maldito ninguém-me-procura.
Mas, eu era mais eu. Editava meus livros, na base do crédito
naturalmente. E saia vendendo. E ia tocando a catraia contra a
maré.”
O BANDO
“Nos meados de
outubro de 1979, um grupo de atores se juntou para, clandestinamente,
montar Barrela, que completava 20 anos de proibição
pela censura. A peça estreou em dezembro, no porão
do TBC [Teatro Brasileiro de Comédias, SP], gentilmente
cedido por Antônio Abujamra, diretor do TBC na época.
Os ingressos eram vendidos pelo próprio elenco que, nas
ruas, os ofereciam para as pessoas. Todas as sessões, que
eram realizadas às sextas-feiras, à meia-noite,
lotaram. Um êxito.”
·Em 1980, as peças
Barrela e O Abajur Lilás foram liberadas pela Censura Federal.
E O
BANDO [nome dado ao grupo de artistas que se juntou em torno
de Barrela] prosseguiu na luta. Barrela faz um retumbante sucesso
de crítica e de público.· ·Vinte e
um anos depois de ter sido escrita, essa peça-reportagem
lamentavalmente ainda vale. Retratava a realidade dos presídios
há vinte e um anos, e ainda tem validade. Uma pena. Pena,
porque os méritos não cabem à peça.
É tudo culpa do país, que não evoluiu socialmente.
E, se continuarmos desse jeito, essa peça vira um clássico.·
[O BANDO transfere-se para o Teatro Taib, SP, e monta, em seguida,
Dois Perdidos Numa Noite Suja, Oração para um Pé-de-Chinelo
e Jesus-Homem.] “E todas as manhãs, os atores e os
compositores do espetáculo saem às ruas distribuindo
papeizinhos (filipetas) para o espetáculo da noite. Nessa
batalha, houve muitos pererecos, pois logo a rapaziada percebeu
que, em São Paulo, distribuidor de bônus teatral
é mais perseguido do que vendedor de maconha em porta de
colégio.”
“É preciso tirar o homem comum da casa dele. É
preciso inquietá-lo. O BANDO acha isso. E acredita que
é necessário montar peças que retratem a
realidade brasileira com toda crueza. Mas, será que o homem
comum vai sair de casa para ver e escutar coisas duras? Então,
antes da peça, arma-se um show de música popular
brasileira, com compositores excelentes. O homem comum não
lê jornais, não fica sabendo dos espetáculos.
Então, suprime-se o anúncio dos jornais e se vai
para a rua distribuir bônus de mão em mão.
Mas, o homem comum não pode pagar o preço do ingresso.
Então se aluga um teatro grande e se cobra ingresso bem
barato. Mas, o homem comum precisa reaprender a converrsar. Nós
também. Toda a nação brasileira precisa reaprender
a conversar, depois de dezesseis anos de obscurantismo. Vamos
tentar reaprender. Trocar idéias, sem querer impor posições.
Faremos debates ao final de cada espetáculo. Tudo pronto.
Belo espetáculo esse de O BANDO. Bônus nas ruas.
Casa cheia. Debates concorridos. E aí baixa a repressão.
Bônus, papeletas, panfleto não pode. Suja a cidade.
Popularizar o teatro não pode? Tem que poder.”
[O Secretário de Cultura do Município de São
Paulo autoriza a distribuição, mas O BANDO continuou
tendo dificuldades com a polícia nas ruas. Apesar disso,
a experiência foi um sucesso, pois somente Barrela foi assistida
por mais de 60.000 pessoas. Mesmo adotando o princípio
de dispensar qualquer verba governamental e trabalhando com a
redução do preço do ingresso, O BANDO se
manteve por mais de um ano, graças a esse trabalho de divulgação
dos espetáculos nas ruas e ao sistema de cooperativa integralmente
adotado pelos artistas, o que valeu a Plínio Marcos o Prêmio
Mambembe de melhor produtor, pela eficiente forma de produção
adotada.]
PALESTRAS E SHOWS
[A partir da década
de 80, intensifica uma atividade que já vinha exercendo:
fazer debates e palestras
em faculdades e universidades, teatros, clubes e, até,
em praça pública, não só na cidade
de São Paulo, mas em inúmeras cidades do interior
do mesmo Estado e do Brasil todo.]
“No ano passado fiz 150 cidades. Este ano [julho/1980],
já fiz 58. Acho que é muito mais importante você
transmitir pessoalmente a sua experiência para o povo do
que passar tudo somente através da arte. Eu sou povo, e
com ele me sinto em casa.”
“Eu era proibido em todos os ofícios que tinha –
cronista esportivo, cronista de carnaval, trabalhar na televisão.
Mas, batalhei e voltei às minhas origens. Camelô,
vender meus livros na rua para sobreviver.” “Quando
tem palestra, aí é melhor, porque camelô que
fala vende mais.” “Sou um camelô da literatura.
Hoje [1986] posso dizer que é muito difícil ainda.
É difícil ter espaço nos jornais, encontrar
lugar para vender livro. Cheguei a ser expulso de vários
lugares. É uma brutalidade única.” “Eu
nunca fui um escritor profissional, morreria de fome se fosse
viver dos meus livros.
Teria que acabar fazendo milhares
de concessões. Mas, camelô, ah!, isso eu sou bom.
Vendo meus livros, dou autógrafos e prometo morrer logo
para valorizar. Eu sou um escritor imortal, não da Academia
Brasileira de Letras, mas porque não tenho onde cair morto.”
[Nos debates com estudantes], “eles esperam, como todo mundo
espera, que apareça um guru, um pai, um líder. Não
que seja como eu, um cego, mas que aponte caminho. Eles ficam
muito putos da vida quando eu vou, porque eles vão esperando
que eu cague regras e eu não, só destruo as ilusões.
Agora, eu faço questão de dizer para eles que, quando
eu passo por ali, eles não vão saber se é
para gostar ou não de mim. Uma coisa eles têm de
saber. Eu estou corrrendo risco por causa da palavra.”
[Em 1984, estréia um espetáculo-solo no Teatro Eugênio
Kusnet (ex-Arena): O
Palhaço Repete seu Discurso, com o qual também
se apresentaria em inúmeras cidades.] “Neste show-palestra
(ou palestra-show), o Palhaço é um instigador, que
com seu humor grosso e maldito das quebradas do mundaréu
vai desfilando casos que comprovam a absurda rotina que os homens
sérios, empolados de responsáveis, estão
levando, sem nenhuma participação na própria
história, sem nenhuma influência no próprio
destino. O Palhaço, marginalizado por não aceitar
as regras do jogo dos homens enquadrados, não se afasta
da sociedade. Permanece nas proximidades dos cidadãos contribuintes,
destruindo seus valores, ridicularizando-os com seu humor grosso,
chocando-os com sua linguagem livre, instigando-os para a tomada
de consciência, na esperança de despertá-los
para a vida. Ah, existe tanto amor nesse maldito Palhaço...”
[Por muitos anos continuou fazendo palestras-shows para estudantes,
muitas vezes acompanhado de seu filho Léo Lama,
como num espetáculo que fizeram, em 1993: 40
Anos de Luta.]
RELIGIOSIDADE E TARÔ
[Em 1985, escreveu
no programa da peça Madame Blavatisky, a respeito de seu
interesse por temas místicos:] “Sou um homem à
procura da religiosidade. Dispensa-me dos rótulos, por
favor, e eu te explico que a religiosidade nada tem a ver com
seitas, igrejas, grupelhos carolas, fanáticos acorrentados
a dogmas e superstições. A religiosidade nada tem
de alienação, conformismo ou adaptação
a um sistema político-social-econômico injusto. Aliás,
a religiosidade é altamente subversiva. A religiosidade
leva o homem ao autoconhecimento. E o autoconhecimento leva o
homem à subversão.” “Eu mudei no sentido
de que sempre acreditei que o homem desperto tem o dever de ser
mutante. Como espero continuar sempre mudando. Mas, os valores
que dignificam o homem e que eu preservava, esses permanecem.
Continuo, com a graça de Deus, com a coragem de dizer o
que penso, sem fazer nenhum esforço para agradar aos poderosos,
aos grupos políticos ou religiosos.” “Tento
chocar. Com muito vigor. Não faço isso por política.
Faço isso por religiosidade.
Mesmo considerando que toda atitude do homem é política.
A política é sempre a luta pelo poder. Todo o esforço
dos políticos é no sentido do poder. Já o
homem com religiosidade, o homem que tem o autoconhecimento, não
deseja o poder, nem se submete ao poder. Portanto, rasga a regra,
rompe a estrutura, arrebenta elos da cadeia. Subverte.”
[A rigor, portanto, não se pode falar de sua conversão
espiritual, pois suas peças sempre foram carregadas de
religiosidade.] “Dom Hélder Câmara, depois
do espetáculo a que assistiu no Recife, fez questão
de declarar para a imprensa que a peça [Dois Perdidos Numa
Noite Suja], devido à sua religiosidade, valia por vários
sermões e até missas. E o padre Êdnio Vale,
declarou numa entrevista: ... peça de tema profundamente
religioso, mesmo que não tenha sido essa a intenção
do autor.” “A verdade é que a maioria das pessoas
se ligava em outros valores para gostar ou não das peças.
Então, eu tentei fazer um teatro com a religiosidade exposta
com maior clareza. Escrevi Dia Virá, uma peça sobre
o Senhor Jesus Cristo, com as meninas do colégio Des Oiseaux,
um colégio de freiras.” “ Escrevi Balbina de
Iansã, sobre o candomblé.” “Depois,
fiz também Jesus-Homem [segunda versão de Dia Virá],
com debates todas as noites depois do espetáculo, com pessoas
de todas as crenças.” “E agora vamos com a
Blavatisky.”
[Em 1970, quando escreveu Balbina de Iansã, esteve envolvido
com candomblé e umbanda. Mesmo antes, já se interessava
por esses temas, tendo escrito uma peça sobre a vida dos
orixás para o Tevê de Vanguarda, da Televisão
Tupi.]
[A partir do final da década de 70, passa a se interessar
efetivamente por esoterismo, lendo livros sobre magnetismo, cura
através dos metais, das cores, do-in – e Tarô.
Estudou os pontos de energia da Medicina Chinesa e, como possuía
forte poder mental, passou a usá-lo para energizar as pessoas,
para fazer massagens, aliviar dores. Com o tempo, acabou criando
um método próprio de leitura de Tarô, que
aliava ao seu poder de magnetização.]
“O Tarô eu aprendi naquele tempo de circo, e fui trabalhando
com ele, trabalhando, trabalhando, até que de uns anos
pra cá [1997], passei a ser profissional, a viver disso.
E comecei a arrumar clientes, essa coisa toda, a brincar, porque
o meu negócio sempre foi brincar.” “O Tarô
é uma arte subversiva.” “O que o Tarô
faz mesmo é ajudar no autoconhecimento.” “Com
magnetismo a gente até cura. Tem um lado espiritual e outras
coisas, cura mesmo. Eu atendi muitos casos de câncer. É
que não vai curar mais porque está num estado terminal,
mas eu tirava a dor mesmo.” “Mas isso não é
um poder. É bioenergética. É uma ciência
que você estuda, aprende e faz. Isso é o que estamos
fazendo. Agora, o cara entende como quiser, se ele pensa que a
gente é mestre, médium...”
[No começo da década de 90, criou um curso: O
Uso Mágico da Palavra. E dava oficinas em vários
lugares, continuando com sua tradição de mambembeiro
e camelô, porque nunca deixou de vender seus livros.]
“Tem gente que me criticou por entrar nessa linha mística.
Mas, catzo, eu não dou espaço para as pessoas me
fazerem cobrança, porra. Eu em nenhum momento estive à
venda, e sempre defendi o direito de ser livre, e sempre fui.”
}