Crítica de FAUSTO FUSER –
Folha de São Paulo, 24/8/73
AS HISTÓRIAS DAS QUEBRADAS DO MUNDARÉU ou HUMOR
GROSSO E MALDITO; autor: PLÍNIO MARCOS; direção:
EMÍLIO FONTANA; sambas: ZECA DA CASA VERDE, GERALDO FILME
e TONIQUINHO; elenco: PLÍNIO MARCOS e os sambistas.
“Aparece tanta gronga boiando nas águas barentas
em que navego contra a maré que meu patuá de fé
e de valia já anda até entortado.”
Plínio Marcos vem até a borda do pequeno palco num
caminhar de timidez ensaiada e suas primeiras palavras ainda mantêm
o tom da conversa despreocupada no camarim. É só
depois que ele cumprimenta a platéia e dita uma deliciosa
receita culinária, que tem início o show desse poeta
do cotidiano, dramaturgo encurralado.
“Nas quebradas do mundaréu, lá onde o vento
encosta o lixo e as pragas botam os ovos, nos atalhos esquisitos,
estreitos e escamosos do roçado do bom Deus, vive o povão
lesado da sociedade, que, apesar de tudo, é generoso, apaixonado,
alegre, esperançoso e crente numa existência melhor
na paz de Oxalá.”
Coerente até o último minuto, o autor proibido de
Navalha na Carne apresenta agora no palquinho do Teatro de Arte,
sob o TBC, o show de humor que, se também por vezes é
pesado e mesmo grosso, nem por isso deixa de ser a reportagem
verdadeira, terna, de uma realidade escamoteada.
O humor pesado de Plínio Marcos já esteve no Arena,
na temporada passada. Naquela ocasião, aplaudimos solidariamente
o dramaturgo amordaçado. O show era um protesto; nosso
aplauso, simpatia e compreensão. Agora, o show do pequeno
teatro da rua Major Diogo revela uma depuração artística
do mesmo texto e podemos aplaudir a armação de um
espetáculo teatral plenamente realizado, de grande força
cômica aliada à emoção inesperada,
breve mas violenta.
Entregando-se na qualidade de barro bruto aos cuidados de Emílio
Fontana, Plínio conseguiu elevar suas anedotas até
esta apresentação, uma das mais importantes da temporada.
O riso do espectador se coloca seguidamente em faixas variáveis,
ora franco, ora encabulado, ora cúmplice. Aos poucos, um
silêncio de reflexão mais séria vai se infiltrando,
sem perturbar a comicidade dominante, conferindo uma dimensão
insuspeitada aos episódios por vezes dedicado ao palavrão,
à grosseria deslavada, forma de protesto de igual qualidade
à receita culinária da apresentação.
Ao dirigir Plínio e aqueles três maravilhosos engraxates-poetas,
seus companheiros de samba e ternura, Emílio Fontana reafirma-se
como um de nossos raríssimos homens de teatro movidos apenas
pela convicção. Diretor intransigente consigo mesmo,
afastado voluntariamente do teatro-mercadoria, colocou-se, ele
próprio, como encenador marginalizado. Para essa lamentável
marginalização também não deve ter
deixado de contribuir o preconceito confortável de quantos
se guiam artística e intelectualmente pelos ditames da
moda, da onda, do momento vazio, do brilho das lantejoulas. Enquanto
outros de sua geração se deixam orgulhosamente julgar
pelos preços cobrados em encenações enganosas
e vãs, Emílio Fontana recolheu-se em silêncio
às suas aulas mais de vida que de teatro, na escola quase
secreta que mantém sem pedir nada a ninguém. Cercado
de discípulos fervorosos, criou um lugar onde a palavra
preconceito sequer precisa ser mencionada, onde o ser humano é
mais importante que os rótulos e as classificações
da aparência.
Plínio Marcos não poderia ter feito melhor escolha
ao convidar Fontana para companheiro e diretor artístico.
O show é conduzido de forma segura, sensível. Os
recursos empregados jamais estão ali por mera aparência,
ou melhor, são recursos empregados com a intenção
evidente de não aparecer, mas de dar apoio ao aparecimento
das figuras humanas criadas ora pela imaginação
do poeta, ora pedaços comovidos de uma infância inquestionável
de dor, salva apenas, adivinhamos, pela poesia e pelo samba.
Somente um grande diretor poderia proteger aquelas figuras tímidas,
frágeis, envoltas numa linguagem poética simples
demais para atravessar a couraça da sólida cultura
de mesa e salão. Plínio Marcos oferece, pelas mãos
de Fontana, um divertimento à altura de qualquer concorrência.
Sem conceder, sem apelar. Zeca da Casa Verde, Geraldo Filme e
Toniquinho foram, respectivamente, guia de cego, carregador de
sacos de batata, entregador de marmitas, todos engraxates, os
três são pretos, poetas, sambistas. O filho de Geraldão
joga basquete na Hebraica. (“Em casa não temos preconceitos”,
justifica ele, entre aplausos), as filhas de Toniquinho estudam
folclore.
Brasil-Novo editou Plínio Marcos em figurinha de álbum.
Um bom trabalho, de ângulo favorável, Plínio,
em camisa de televisão, foi oferecido com a Transamazônica,
tratores, futebol e carnaval. “Foram tretas da coleção
Brasil-Novo”, protesta Plínio, que se recusa ser
figurinha, na afirmação final do espetáculo,
retrato de corpo inteiro, sem cores enganosas, tamanho natural,
de gente inteira.
Zeca da Casa Verde, Zeca do Morro, Zeca Ternura canta “Bom-dia,
manhã, mas que linda manhã” Bom-dia, meu dia”.
Entre piadas, sambas simples de palavras simples, que todos entendem.
O Largo da Banana, o povão, a mulher da vida, o habeas-corpus
do marido sambista. Reportagem, histórias das quebradas
do mundaréu. Palavrões, grosserias, dignidade, coerência
de cinco homens inquebrantáveis, artistas jamais postos
à venda.
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